Saúde - REVISTA VEJA -
23 de junho de 2007
As mães de UTI
Um olhar sobre as mulheres
que abandonam
tudo para acompanhar os filhos hospitalizados
Adriana Dias Lopes
Fotos Fabiano Accorsi
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SEM PLANOS
Nos sete anos e meio de
internação de Alice, Rosely se divorciou, afastou-se dos amigos
e só ficou longe da filha por dois dias em duas ocasiões
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No dia em que completou 5 meses de vida, Alice foi levada às pressas
para o pronto-socorro. Além de apresentar febre alta, a menina
respirava com muita dificuldade. Da emergência, ela passou à unidade
de terapia intensiva (UTI). No dia seguinte, estava entubada. Um mês
depois, os médicos a submeteram a uma traqueostomia. No domingo
retrasado, Alice completou 8 anos. O aniversário foi comemorado com
bolo, presentes e Parabéns para Você. Entre os convidados,
além de alguns parentes, havia médicos e enfermeiros – todos da
equipe do hospital para onde Alice foi levada ainda bebê e de onde
jamais saiu. Vítima de uma doença muscular, a garota perdeu todos os
movimentos do corpo. Atualmente presa a um leito da unidade de
terapia semi-intensiva, comunica-se apenas com o olhar. Ninguém
entende melhor o que os olhos de Alice querem dizer do que a mãe,
Rosely Prazeres de Maria – e é evidente a calma da menina quando ela
está por perto. Aos 40 anos, Rosely vive em função da filha. Ao
longo dos últimos oito anos, separou-se do marido, reduziu o ritmo
de trabalho, afastou-se dos amigos. Em todo esse tempo, não teve um
único namorado. Ficou longe de Alice por, no máximo, dois dias, em
apenas duas ocasiões. Numa delas, ganhou uma viagem da empresa em
que trabalha. "Foi um desastre. Morri de culpa", diz Rosely. "Chorei
o tempo todo e telefonei para o hospital dez vezes por dia, sem
exagero." Os afastamentos, se depender dela, nunca mais se
repetirão.
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O EXERCÍCIO DA
MATERNIDADE
Isabela não desgrudou de
João nos sete meses em que ele esteve no hospital: "Eu me metia
no trabalho de todo mundo". O menino hoje está com 9 meses e não
corre mais risco de vida |
Rosely pertence a um universo invisível para quem está só de
passagem por um hospital – o das mães de UTI. São aquelas mulheres
que saem pela porta dos fundos das maternidades, sem o filho
recém-nascido nos braços. Ou aquelas que, como Rosely, se vêem
obrigadas a devolver suas crianças aos cuidados da medicina. De uma
hora para outra, elas são arrancadas de seu cotidiano familiar.
Planos são interrompidos. A vida é suspensa pelas ameaças
permanentes que pairam sobre seus filhos. "Não bastasse toda essa
situação, ainda convivem com a culpa. Inconscientemente,
responsabilizam-se pelo fato de o filho não ter nascido saudável",
diz a psicóloga Daniela de Almeida Andretto, da Faculdade de Saúde
Pública da Universidade de São Paulo. "Com isso, isolam-se do mundo
e, em muitos casos, até do marido." Entre as mães de UTI, o índice
de divórcios é altíssimo. Chega a 30%, quando a criança fica
internada até seis meses, e a 50%, quando a hospitalização chega a
um ano. Acima desse período, 70% delas enfrentam a separação.
Até bem pouco tempo atrás, a presença constante dessas mães nas UTIs
seria inimaginável. Elas só podiam ficar em companhia dos filhos
quinze minutos, três vezes por dia. "Como vários estudos vieram a
comprovar que o contato com as mães faz bem às crianças, os
hospitais passaram a incentivar a entrada delas nas unidades de
terapia intensiva", diz o neuropediatra José Salomão Schwartzman.
Crianças que passam uma hora por dia em contato com a mãe reagem com
mais serenidade às intervenções médicas. Durante um exame, por
exemplo, elas choram 80% menos e expressam 20% menos dor. Nessas
situações, o risco de parada cardiorrespiratória durante o
procedimento é quatro vezes menor. "Além disso, com a aproximação
entre mãe e filho, a produção de leite materno aumenta, podendo até
dobrar", diz a neonatologista Miriam Ricca, do Hospital e
Maternidade São Luiz, na capital paulista. Diante de todos esses
benefícios, nos últimos cinco anos, muitos hospitais não só acabaram
com o limite de tempo para a visita materna como investiram numa
infra-estrutura especial para as mães – salas de descanso, com
televisão e banheiro privativo. Alguns já permitem, inclusive, que
elas durmam em companhia das crianças.
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A ANGÚSTIA DA DÚVIDA
"Meu tormento era nunca
ter certeza de que estava fazendo tudo que podia por minha
filha", diz Maria Julia, sobre a internação de Sofia. A menina
nasceu com um problema cardíaco e morreu com 1 ano e 3 meses
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Uma das lembranças mais dolorosas para a terapeuta corporal Maria
Julia Miele, de 40 anos, é a de não ter podido estar o tempo todo ao
lado da filha Sofia, durante o período de um ano e três meses em que
a menina esteve internada em UTIs de alto risco. "A hora da visita
era um horror", lembra Maria Julia. "Enfrentava uma fila de mães,
que eram chamadas uma a uma. Quando meu nome era chamado por último,
eu já sabia: minha menina não estava bem." Sofia nasceu com um
problema cardíaco. Quando Maria Julia foi visitar a menina pela
primeira vez na UTI, um dia após o parto, entrou assustada. Não
conseguia lembrar do rosto da filha. Depois do nascimento, ela havia
tido poucos segundos para conhecer Sofia – o suficiente apenas para
dar um beijo na recém-nascida. "Passei pela minha filhinha sem
reconhecê-la. Quando me aproximei da segunda incubadora, ouvi da
enfermeira que Sofia estava na primeira", conta Maria Julia. A
menina morreu com 1 ano e 3 meses, em julho de 2002. Maria Julia
acompanhou cada minuto da batalha de sua filha pela sobrevivência,
incluindo transferências para dois hospitais e uma cirurgia de dez
horas de duração. "Ao longo de todo esse tempo, vivi como se tivesse
perdido o chão", diz. "Meu tormento era nunca ter certeza de que
estava fazendo tudo que podia por ela." Autora do livro Mãe de
UTI, Maria Julia recentemente fundou a ONG Instituto Abrace, de
apoio às mães de filhos hospitalizados.
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ALMA MARCADA
Os onze dias em que o
filho Henrique ficou internado na UTI mostraram a Andréa o que
de fato é "precioso" em sua vida. Ela passou a trabalhar menos
para se dedicar ao menino, de 5 anos, e à filha mais velha,
Laura |
Ter uma criança numa UTI é morrer um pouco. Dependendo da gravidade
do problema, morre-se mais ou menos. "O despreparo para lidar com
essa situação é sempre total", diz a psicóloga Daniela de Almeida
Andretto. Segundo um levantamento da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, 44% das mães de
prematuros hospitalizados sofrem de ansiedade e depressão – uma
incidência duas vezes maior do que a registrada na população em
geral. Não há dúvida de que a possibilidade de permanecer ao lado do
filho, sem hora marcada para ir embora, ajuda a amenizar o
sofrimento. Porque também é a única maneira de essas mulheres
poderem exercer a sua maternidade. "Eu não desgrudava do meu filho,
me metia no trabalho de todo mundo, queria resolver tudo", diz a
executiva Isabela Massola Mendes, de 34 anos, mãe de João Pedro,
hoje com 9 meses. O menino nasceu com uma anomalia no coração que
lhe prejudicou o desenvolvimento da traquéia. Por isso, teve de
ficar sete meses na UTI. Apesar de ter recebido alta, João até agora
requer cuidados especiais. Para respirar, precisa da ajuda do tubo
de traqueostomia e, em breve, será operado pela sexta vez. "Consegui
sobreviver a todos esses meses de internação porque, desde o começo,
desejava que João passasse o dia bem. Era como se eu estivesse numa
grande batalha diária", diz Isabela. Só depois que o menino foi
declarado fora de perigo, Isabela conseguiu chorar. No pulso
esquerdo, ela traz tatuado o desenho (miúdo) das cinco cicatrizes
cirúrgicas que o pequeno João traz no peito.
Ter um filho numa UTI é viver um pouco mais. A alma da maioria
dessas mulheres será indelevelmente marcada por esse drama. Hoje,
Henrique está com 5 anos e é um menino saudável. Mas, ao nascer, ele
contraiu pneumonia e ficou numa UTI por onze dias. "No começo, eu
ficava muito dividida por causa de minha filha mais velha, que
estava com 2 anos", lembra Andréa Crevatin, de 41 anos. "Ia e
voltava da maternidade para casa, de casa para a maternidade... Até
que resolvi parar e me dedicar integralmente a Henrique." Depois do
susto, com o filho curado, Andréa abriu mão de 20% do salário como
funcionária pública para trabalhar menos e ficar mais tempo com as
crianças. "Henrique me mostrou o que de fato é precioso na minha
vida. Ele me trouxe o chão." É aquele mesmo chão perdido por Maria
Julia. E o que Isabela e Rosely tentam pavimentar a cada dia.
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