Quase 4 décadas vividas no HC

Vítimas da pólio, Paulo e Eliane moram em um quarto de 10 m2 do maior complexo hospitalar da América Latina

Emilio Sant’Anna

Estado de São Paulo

  Eliana

Paulo Machado, trabalha em seu computador. Eliane faz pinturas utilizando a boca.

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Enquanto o mundo parava para assistir ao americano Neil Armstrong se tornar o primeiro homem a pisar na Lua, em 20 de julho de 1969, um menino de pouco mais de 1 ano começava um longo caminho para manter-se vivo. Naquela noite, um grupo de médicos e enfermeiros do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo reunia-se diante de um aparelho de TV preto-e-branco no quarto para acompanhar a façanha. Esse é o primeiro grande evento ocorrido desde a internação de Paulo Henrique Machado, hoje com 40 anos, o paciente mais antigo do maior complexo hospitalar da América Latina.

Ali, no sexto andar do Instituto de Ortopedia, ele passou praticamente a vida inteira. Como milhares de outras crianças nas décadas de 50, 60 e 70, ele foi acometido pela poliomielite, que provoca paralisia às vezes fatal. Além do comprometimento nos movimentos das pernas, seus pulmões também sofriam. “O Velho Pulmão de Aço”, como ele se refere ao aparelho usado na época, mantinha Paulo vivo.

Foram três meses de seções na máquina - um cilindro de metal de quase 2 metros de comprimento - onde apenas a cabeça do paciente ficava para fora. A técnica, há muito aposentada, forçava os pulmões a se expandir criando uma diferença de pressão entre o interior do corpo e o interior do cilindro. Os pulmões de Paulo, no entanto, nunca se recuperaram totalmente e só funcionam hoje com a ajuda de um respirador artificial. “Não existe culpado. O destino simplesmente aconteceu dessa forma”, diz.

Como não havia possibilidade de receber o tratamento fora dali, sua permanência no hospital foi se estendendo. Órfão de mãe desde os 2 anos, ele foi se apegando a médicos e enfermeiros, que viraram sua família.

Entre os pacientes que entravam e saiam da ala de vítimas da epidemia em que havia se transformado a paralisia infantil, um grupo de crianças foi se formando. Pedro, Anderson, Luciana, Cláudia, Tânia. Os sobrenomes perderam-se na memória de Paulo. As lembranças, não. “Passávamos o dia brincando, conversando e brigando.” Os enfermeiros juntavam as camas e colocavam um pedaço de madeira entre elas, onde ficavam os brinquedos.

A vida ia passando assim, em meio a médicos, exames e visitas que se tornaram cada vez mais raras. Um dia, em 1975, uma nova paciente chegou ao quarto de Paulo. Com menos de 2 anos, Eliane Zagui vinha de Guaíra, região de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Seus pais, um funcionário de uma fundição e uma dona de casa, procuravam um atendimento médico que não existia em sua região. Quando chegaram ao HC, a pólio já havia tirado todos os movimentos do corpo da menina. Restavam apenas os da cabeça. O destino de Eliane foi o mesmo de Paulo: sessões no “Pulmão de Aço” para manter-se viva. Os órgãos dela também não voltariam a respirar por mais de algumas horas sem ajuda de aparelhos. Trajetórias semelhantes de duas pessoas que nunca mais se separaram.

À medida que ficaram mais velhos, a vida no hospital foi ficando mais difícil. No início da década de 80, a adolescência trouxe para Paulo a descoberta da sexualidade e as primeiras paixões e, ao mesmo tempo, a revolta. “Não existe idade para sentir revolta, pode acontecer com 12 ou 90 anos”, diz. “O que existe são fases de aceitação.”

A convivência com os amigos de quarto diminuía a angústia. Em 1982, apareceu por lá um certo João do Pulo - até então desconhecido para eles. A movimentação de policiais, repórteres e curiosos no instituto desvendou o mistério. Tratava-se de um dos maiores atletas do País. Recordista mundial no salto triplo, sofrera um acidente que lhe custara a amputação da perna direita.

O episódio tirou as crianças da rotina. “Já que as visitas não vinham com tanta freqüência, chamávamos os policiais que passavam pela porta do quarto e isso acabou nos dando novas amizades”, lembra Paulo. Quando João do Pulo começou a reabilitação, passava horas no quarto deles. “No dia em que foi embora, todos nós choramos.”

Em 1992, uma infecção respiratória atingiu um dos garotos. Não durou mais do que algumas semanas e, num domingo à noite, matou Pedro, aos 20 anos. Nos anos seguintes, os outros companheiros de quarto também foram morrendo. Anderson, em 1993; Luciana e Tânia, em 1994; e, finalmente, Claudia, em 1996. Em quatro anos, cinco pacientes que cresceram juntos estavam mortos. “Foi uma mutilação. Todos foram embora e me restou apenas o Paulo”, diz Eliane.

O mundo foi diminuindo para eles a ponto de parecer caber dentro de um quarto. A vontade de aprender abriu uma janela que eles não conheciam. A lembrança de Armstrong pisando na Lua parece ter influenciado toda a vida de Paulo. Do interesse pela ciência e o cinema nasceu o contato com o computador e a internet. Tornou-se fluente em inglês para compreender um mundo que o atraía. No quarto de pouco mais de 10m² em que moram hoje, a coleção de filmes de ficção - o quarto relançamento de Blade Runner ainda está na caixa - divide espaço com computador, televisão, videogame, aparelho de DVD e iPod.

Enquanto os quadros de Eliane rodavam o mundo em exposições organizadas por uma associação suíça de pintores com a boca, o design gráfico tomava conta da vida de Paulo. Boa parte da renda dele vem do trabalho como web designer. Sonha fazer faculdade de Cinema e conhecer Carlos Saldanha, o brasileiro que fez as animações do filme A Era do Gelo. “Queria que visse meu trabalho e me desse conselhos.” Além das exposições cada vez mais freqüentes e da intenção de terminar os estudos para fazer Psicologia ou Artes, o maior projeto de Eliane está guardado a seu lado: um livro sobre uma vida inteira dentro do HC. Ainda falta muito para ficar pronto, mas já tem nome: Pulmão de Aço.

Reflexão: Quantos dias levantamos em um lindo dia de sol, onde flores e árvores mostram-se, balançam, exibem-se para nossos olhos e nos mantemos tristes... Quantos dias estamos tristes por sem motivo ou por uma simples crise de existência... Quantos dias deixamos de abraçar ou ser abraçados .... Quantos dias perdemos em tristezas .... Quantos dias perdemos para sermos felizes  ....

Sim, a UTI é uma lição de vida e humildade .