SARS  -  SÍNDROME  RESPIRATÓRIA AGUDA GRAVE

Matéria - Revista Veja - 1801 - 07 de maio de 2003

Uma epidemia globalizada

Mortal e muito contagioso, o
vírus da Sars põe o mundo em
pânico e pode chegar ao Brasil

 
Reuters

DOENÇA MISTERIOSA
Suspeito de ter contraído Sars dá entrada em hospital de Toronto, no Canadá: infecção globalizada



O que se pode dizer é que o Brasil teve sorte até agora. Nos últimos seis meses, a contar do momento em que fez as primeiras vítimas no sul da China, um vírus novo e letal ultrapassou fronteiras e oceanos até se transformar na primeira epidemia mundial do século XXI. Na sexta-feira passada, a Organização Mundial de Saúde (OMS) registrava oficialmente a existência de mais de 6.000 infectados com a síndrome respiratória aguda grave (Sars, das iniciais em inglês), e cerca de 400 mortes em 28 países. Em território brasileiro houve apenas trinta casos suspeitos, dos quais somente dois continuavam sob investigação. Não há confirmação oficial, mas a Organização Mundial de Saúde já incluiu o Brasil na lista dos países com o registro da doença. É quase nada, se comparado ao que está ocorrendo na Ásia, no Canadá e nos Estados Unidos. A questão é: por quanto tempo o Brasil conseguirá se manter livre da doença? "Com a rapidez com que o vírus está se espalhando, dificilmente o Brasil ficará imune ao problema por muito tempo", responde o médico João Toniolo Neto, especialista em epidemias de gripe da Universidade Federal de São Paulo. "Nos dias de hoje, os micróbios podem ir a qualquer lugar a que cheguem os aviões." Numa era de economia globalizada e com enorme fluxo de viajantes entre os países, uma doença letal e muito contagiosa pode se espalhar rapidamente e atingir proporções mais devastadoras do que qualquer epidemia do passado. A velocidade com que o vírus da Sars fincou raízes em todos os continentes reforça a apavorante idéia de que o pior cenário possa estar se tornando realidade.

A Sars é transmitida de modo semelhante ao de uma gripe comum. Essa forma de contágio, por via aérea, é dificílima de evitar. Um infectado que espirra dentro de um elevador pode contaminar todas as pessoas que entrarem no local pelas três horas seguintes. A única maneira de se proteger é aquela mesma usada contra a gripe e se resume basicamente a evitar aglomerações e lugares onde já se saiba que existe a pneumonia. É difícil. Se um portador viajar de avião de Pequim a São Paulo, com escala em Los Angeles, pode levar inocentemente o vírus a três países em apenas um dia. O exemplo ilustra como o Brasil, o único país da América Latina com casos suspeitos, está vulnerável. No momento, o Ministério da Saúde exerce vigilância sanitária dobrada em aeroportos, portos e fronteiras – por onde entram anualmente 100.000 visitantes vindos da Ásia. Há 32 hospitais credenciados em todo o país para receber casos suspeitos, alguns deles equipados com filtros de ar e exaustores para proteger médicos e enfermeiros do contágio. Os brasileiros não devem ser otimistas com relação à segurança oferecida por tal aparato. "É impossível evitar a entrada da doença no Brasil; o que podemos fazer é isolar o doente, para que o vírus não se alastre", admite Jarbas Barbosa, diretor do Centro Nacional de Epidemiologia do Ministério da Saúde. O isolamento do paciente reduz o risco de contágio em mais de 60%. Se ele não for colocado em quarentena, irá contaminar pelo menos uma em cada cinco pessoas com quem tiver contato.

 
Reuters/Kin Cheung

NA ERA DOS MASCARADOS
A moda das máscaras cirúrgicas num shopping de Hong Kong: a Ásia em quarentena

A dificuldade de barrar a doença no aeroporto não decorre das precariedades de um país subdesenvolvido. "A Sars já se espalhou demais para que agora se possa simplesmente segurá-la em aeroportos", disse a VEJA o virologista americano Mark Denison, da Universidade Vanderbilt, do Tennessee, nos Estados Unidos. Países com sistemas de saúde sofisticados deixaram a Sars entrar em seu território e agora enfrentam dificuldades para impedir sua propagação. Há meia centena de doentes nos Estados Unidos. Na sexta-feira passada, novos casos surgiram na Itália, em Taiwan, na Polônia e no Canadá. Esta é a nação mais atingida no hemisfério ocidental, com 22 mortes. Para agravar a situação, o vírus avança sem controle no país mais populoso do mundo. A China, com 1,3 bilhão de habitantes, responde por 85% dos óbitos. O número de mortes causadas pela Sars é relativamente pequeno se comparado aos, digamos, 3 milhões de pessoas que morreram de Aids no ano passado. Ou aos 20 000 óbitos da dengue. No entanto, se a Sars continuar a se espalhar, a quantidade de mortos poderá se tornar estratosférica. A taxa de letalidade da doença, ou seja, quantos infectados morrem, é de 6%. Mas mesmo uma taxa baixa pode causar uma catástrofe. A gripe espanhola apresentava índice de letalidade de menos de 3%, mas tantas pessoas foram infectadas que 20 milhões morreram entre 1918 e 1919. No Brasil, a epidemia matou 300.000, 2% da população da época. O equivalente hoje seria a morte de 3,4 milhões de brasileiros.

Por enquanto, os cientistas têm mais perguntas que respostas sobre a Sars. Numa velocidade impressionante nesse tipo de pesquisa, o vírus da doença já foi isolado e teve seu código genético decifrado. Trata-se de microrganismo da família dos coronavírus. São velhos conhecidos da medicina veterinária porque infectam o gado, patos e outros animais domésticos e representam, para os bichos, doenças graves. Em seres humanos nunca causaram nada mais sério que um resfriado. A situação é inteiramente diferente com a variedade que está causando a Sars. Os primeiros casos apresentavam as mesmas febre e dores musculares da gripe comum (que é causada por outro vírus, o influenza). Médicos e enfermeiros que atenderam vítimas infectadas somam um terço do número de casos registrados. O médico italiano Carlo Urbani, o primeiro cientista a alertar a OMS para o surgimento de uma estranha doença – que ele próprio batizou de pneumonia asiática –, foi contaminado e morreu. Os cientistas sabem que uma única mudança no código genético pode significar a diferença entre um vírus que ataca galinhas e um que mata pessoas.

O código genético desses micróbios é baseado no RNA, uma molécula bastante similar ao DNA dos organismos superiores, como o homem. Ambos acumulam erros a cada geração, mas o DNA dispõe de mecanismos para manter as mudanças sob controle. Já o RNA se altera a cada replicação. A maioria dessas mutações não significa nada. Mas algumas delas potencializam a capacidade infecciosa. O que transformou o coronavírus numa praga ainda sem controle? Os cientistas que seqüenciaram seu material genético estão aturdidos. Não foram encontrados indícios de sua procedência nem se descobriu como ele infecta e mata as pessoas. Pode ser que tenha ocorrido uma mutação radical. Alguns estudiosos sugerem que já estão em circulação duas cepas do mesmo microrganismo. A suspeita decorre do fato de a doença em alguns casos atacar não apenas o pulmão, mas também o aparelho digestivo, causando diarréias. Outra possibilidade é que a Sars já existia na natureza, mas os seres humanos nunca haviam tido contato com ela. Sabe-se pelo menos que o coronavírus não foi encontrado no material mais antigo armazenado em bancos de sangue que foi examinado por investigadores. O primeiro infectado pode ter adquirido a doença em uma floresta inexplorada ou após consumir um animal portador do vírus. O fato de a epidemia ter começado pela província de Guangdong reforça a segunda hipótese. A região tem a maior concentração de aves e porcos, hospedeiros naturais de coronavírus e do influenza, o causador da gripe. O elevado número de casos envolvendo vendedores de feiras livres, onde os animais são abatidos, chamou a atenção dos pesquisadores.

 
AP

VÍRUS DO MEDO
Passageiro chinês tem bagagem revistada ao desembarcar em Milão, na Itália: como as gripes, a Sars vem da Ásia

Todas as grandes epidemias com sintomas típicos de gripe dos últimos 100 anos tiveram origem na Ásia. Algumas foram bastante graves. A gripe asiática, em 1957, matou 1 milhão de pessoas. A gripe de Hong Kong, em 1968, deixou um rastro de 700.000 mortos por um vírus transmitido pelas galinhas. Os estudos já realizados sobre as epidemias de gripe são a melhor base para tentar entender o comportamento da nova doença. Os surtos de gripes e resfriados ocorrem uma vez por ano, em média, sempre entre o outono e o inverno. "Não é a baixa temperatura que aumenta as probabilidades de contrair a doença, e sim o fato de o frio favorecer a aglomeração de pessoas e fazer com que elas fiquem mais confinadas", diz o médico João Toniolo Neto. A umidade do ar provocada por baixas temperaturas em vários países permite que os vírus causadores de resfriado e gripe sobrevivam por mais tempo na atmosfera ou em superfícies contaminadas. Isso pode explicar por que a Sars atingiu sobretudo os países no inverno. No Brasil, o próximo surto de gripe está previsto para se iniciar no próximo mês, quando começa a esfriar em boa parte do país.

Não há motivo para pânico, mas é necessário estar atento aos sintomas da Sars, que são parecidos com os de gripe. A síndrome começa com febre alta, acima de 38 graus, acompanhada de calafrios, dor de cabeça, dores musculares e, em alguns casos, falta de apetite e diarréia. Após três dias, em média, o doente sente dificuldade para respirar e apresenta tosse seca. A melhora começa a partir do sexto dia em 90% dos casos. Nos demais doentes, o quadro evolui para insuficiência respiratória grave, que pode levar à morte. A Sars é transmitida pelo contato com a saliva e outras secreções da pessoa infectada – daí a disseminação do uso de máscaras cirúrgicas nos países atingidos pela epidemia. A rigor, as máscaras não conseguem impedir o contágio, pois o vírus tem tamanho tão diminuto que passa pela malha do tecido. Mas elas evitam, por exemplo, que a pessoa que esteja com micróbios nas mãos os leve à boca ou ao nariz simplesmente tocando esses órgãos. Com essa medida, ficam reduzidos os riscos de transmissão do vírus. Os doentes são isolados para que não passem o mal para a frente e também para que sejam tratados, a fim de aliviar os sintomas da doença – mas não se conhece nenhum medicamento que combata o vírus propriamente dito.

 
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VIGILÂNCIA REDOBRADA
Israelense tem a temperatura medida no aeroporto de Tel-Aviv ao chegar de Toronto

As epidemias de gripe terminam em seis meses, em média, quando um número grande de pessoas adquire imunidade e o contágio começa a decair. A imunidade permanece por um ano no organismo humano. Isso significa que nesse período uma nova gripe será causada por outro tipo de agente. O vírus influenza também muda um pouquinho a cada geração e se transforma totalmente em ciclos de quarenta anos. É quando causa quadros de maior gravidade, como a gripe espanhola. A próxima epidemia está prevista para ocorrer em 2017. Ninguém sabe se é também esse o comportamento dos coronavírus. Em Hong Kong, os médicos identificaram vários pacientes que aparentemente se recuperaram mas que ainda carregam muitos desses micróbios na corrente sanguínea. A suspeita perturbadora é a de que ainda possam transmitir a doença. Não há nada de tranqüilizador nesse assunto. Pesquisadores da Universidade de Hong Kong acreditam que, graças à alta capacidade de mutação e à adaptabilidade ao meio ambiente, o vírus que causa a Sars possa ficar "adormecido" durante os meses de calor e volte a atacar homens e mulheres no inverno, causando novo surto.

A eclosão da epidemia é um lembrete dramático da dificuldade de lidar com as doenças causadas por vírus. Duas décadas atrás, conseguiu-se erradicar a varíola. Na ocasião, a Organização Panamericana de Saúde reuniu-se em Washington para discutir qual doença seria a próxima a ser extinta. A conclusão foi que a lista de males passíveis de cura era bem pequena. Por várias razões. A principal é que para exterminar uma doença é preciso que ela só exista no ser humano, sem ter um animal como hospedeiro ou transmissor. Do contrário, é impossível erradicar o mal com a existência desse animal. É o que acontece com a gripe. Há muitos vírus da gripe em espécies animais, como pássaros, porcos e cavalos. É exatamente o que ocorre com o coronavírus.

Em seis meses de epidemia, o vírus da Sars já causou um efeito colateral devastador – colocou a economia da Ásia em quarentena. Indústrias fecharam as portas e deram férias coletivas para evitar o contágio dos funcionários. Shoppings e restaurantes estão às moscas. Mesmo que a doença seja contida nas próximas semanas, serão necessários no mínimo seis meses para retomar a rota de crescimento interrompida, conforme as previsões mais otimistas feitas pelo Banco Mundial. O primeiro baque foi sentido pelo setor de turismo. As linhas aéreas que operam na Ásia cancelaram 40% dos vôos. A taxa de ocupação dos hotéis de Hong Kong, que nesta época do ano se situa entre 75% e 80%, despencou para 20%. O fluxo de turistas para Cingapura reduziu-se em 60% em abril, enquanto as vendas no comércio caíram pela metade. Nos aeroportos surgiu uma novidade. Além do detector de metal, os passageiros agora passam por um sensor eletrônico que revela a temperatura do corpo. Os que têm sintomas de febre são isolados e submetidos a um interrogatório – como se fossem terroristas. Por causa da epidemia, a economia de Hong Kong, Cingapura e Taiwan deverá crescer menos que o previsto em 2003. Malásia e Tailândia também estão ameaçadas. O clima é desolador, mas ainda não se compara ao da crise financeira de 1997 – que começou na Bolsa de Valores da Tailândia, varreu toda a região e desencadeou uma megacrise mundial. Na época, as nações asiáticas amargaram redução média de 5% do PIB e levaram dez meses para se recuperar.

O impacto econômico que a doença deve causar na China, porém, poderá ser maior. A previsão de crescimento do PIB chinês neste ano, de 7,6%, já foi refeita para 6,5% – o menor índice desde 1989. "Todos os países da região dependem da economia chinesa, daí o temor de um efeito dominó", disse a VEJA Andy Xie, economista-chefe do banco de investimentos Morgan Stanley em Hong Kong. Metade do que esses países produzem é exportada para a China. A força do dragão chinês não se limita às fronteiras da Ásia. Qualquer chacoalhão na economia chinesa provoca repercussões no resto do mundo. Segundo dados do banco de investimentos JP Morgan, a China compra 40% de todo o petróleo e um quarto do ferro e do aço produzidos no planeta. Com o declínio da demanda chinesa, os preços dessas commodities devem desabar no mercado mundial. Aturdido com a queda média de 10% nas ações de empresas sediadas no país, o governo chinês suspendeu o funcionamento das bolsas de valores de Xangai e Shenzhen, do dia 1º ao dia 18, para evitar uma quebradeira geral.

As ruas das grandes cidades chinesas refletem o baixo-astral causado pelo vírus. Em Pequim, onde cerca de 5.000 pessoas estão de quarentena, o governo ordenou o fechamento de todos os teatros, cinemas, salas de espetáculo e discotecas para conter o avanço da doença. As tarifas telefônicas tiveram redução de 40% para estimular as pessoas a resolver pendências sem sair de casa. Em Guangdong, onde a epidemia teve início, o governo proibiu que grupos entrem ou saiam da província. O temor de um prejuízo econômico em larga escala pode ter contribuído para que o governo chinês escondesse a real dimensão da Sars por dois meses e meio antes de dar o alerta, em abril. Outra explicação é a insistência dos regimes comunistas em abafar as notícias ruins. Em 1986, por exemplo, o governo da União Soviética só admitiu o vazamento nuclear da usina de Chernobyl semanas depois do acidente, quando os efeitos da radiação já atingiam a Europa. As autoridades chinesas fizeram o mesmo – mas o tiro saiu pela culatra. A demora em reconhecer que o país enfrentava uma epidemia permitiu que o vírus da Sars avançasse sem a adoção de medidas preventivas, como o isolamento de casos suspeitos.

O fato de a Sars se encontrar num estágio inicial reforça a cautela quanto a seu potencial. No começo da semana passada, a OMS chegou a comemorar a ausência de novos casos em alguns países, como o Canadá e o Vietnã. Ficou a impressão de que o pior já havia passado e de que a doença já teria ultrapassado seu pico de crescimento. Na quarta-feira surgiram os primeiros casos de reincidência da Sars em doze doentes de Hong Kong que já haviam recebido alta médica. Ocorreram também casos novos na Europa e no Canadá. A notícia mostrou que ainda há muito o que aprender sobre o vírus – e que o pesadelo pode estar apenas começando.

 
João Ramid

 

O mosquito de aeroporto

O coronavírus causador da Sars não é o único agente infeccioso que toma carona nos aviões de carreira. Há também os mosquitos, transmissores de graves enfermidades tropicais. Esses insetos indesejados aproveitam as portas abertas nos aeroportos do Terceiro Mundo e entram nas aeronaves. O uso de inseticidas mata a maioria dos intrusos, mas muitos sobrevivem e pegam carona para Frankfurt, Londres e Nova York. Estima-se que escapem entre oito e vinte mosquitos em cada pouso no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. O resultado foram alguns casos de malária entre os moradores dos arredores do aeroporto. Há dois anos, epidemiologistas americanos ficaram intrigados ao encontrar traços de um dos vírus mais antigos de que se tem notícia, o da malária, em Boston. Essa doença, que atormenta a humanidade desde a pré-história, foi extinta na França e nos Estados Unidos na década de 50. Nova York vive momentos de pânico com um surto de febre do Nilo Ocidental que está em seu quarto ano. A doença africana já matou sete pessoas.

A ciência conseguiu erradicar uma enfermidade terrível – a varíola, declarada extinta em 1980. Paradoxalmente, o progresso também abriu espaço para o aparecimento de novas doenças e a expansão de algumas mais antigas. Desde 1970 foram descobertos pelo menos trinta novos vírus letais, entre eles o HIV, causador da Aids, e o ebola, que mata nove entre dez contaminados. A maioria deles começou quando um ser humano foi contaminado por algum animal. A Aids humana é descendente de um vírus originalmente só encontrado nos chimpanzés – é de supor que a transmissão tenha começado quando caçadores africanos comeram um animal infectado. Na Europa, a mudança em técnicas de alimentação de rebanhos causou o aparecimento e a rápida disseminação da doença da vaca louca. O maior perigo não está na existência de novos agentes infecciosos, mas sim na proliferação de estradas, cidades, aeroportos, transfusões de sangue e drogas injetáveis. São as vias através das quais os micróbios das doenças infecciosas circulam pelo mundo.