Ji - Jornal do Intensivista
Reportagem da Revista Veja de 06 de Abril demonstra o óbito de de 6 pacientes em meia hora. Auditoria do Ministério da Saúde afirma que era comum a prática de Pavulon e Sedativo. Estima-se que no total sejam mais de 317 pacientes.
Virgínia - “Esse foi caprichado, né?”.
Médico – “Esse foi. Quadro clínico
bonito, caprichou. Bem na hora que nós estamos
tranquilos”.
Virgínia - “Nós estamos com a
cabeça bem tranquila para assassinar, para tudo, né?”.
No dia anterior, a polícia já havia capturado outro diálogo entre a médica e outro funcionário não identificado:
Virgínia – “Pode ser que ele diga o
sobrenome, porque ele está bem espertinho. Agora o
outro está morto”.
Médico – “O outro está feio na
foto”.
Virgínia – “Está quieto, tem que
deixar quieto. A hora em que parar o respirador –
foi – pelo amor de Deus”.
Médico – “Ah, tá. Não, tranquilo”.
REVISTA VEJA EDIÇÃO 06 DE ABRIL DE 2013
"Aqui não tem Deus"
Acusada de matar pacientes na UTI que comandava, Virgínia de Souza se gabava de seu poder de vida e morte. Documentos obtidos por VEJA detalham as execuções
Leslie Leitão
Numa manhã, em
meados de 2010, Virgínia Soares de Souza, médica responsável
pela unidade de terapia intensiva para casos de clínica geral do
Hospital Evangélico, o segundo maior de Curitiba, avisou seu
pessoal que um grave acidente de trânsito acabara de fazer
várias vítimas e que eles se preparassem para recebê-las. Uma
das enfermeiras presentes alertou para um problema: todos os
catorze leitos estavam ocupados. Ouviu como resposta que fosse
ao pronto-socorro apressar os procedimentos de internação,
porque as vagas seriam criadas. "Desci para o pronto-socorro com
a UTI lotada. Quando voltei, em menos de meia hora, seis
pacientes tinham morrido. Fiquei apavorada", conta a VEJA a
enfermeira, que não quer ser identificada por temer represálias.
Ela ainda perguntou ao colega Claudinei Machado Nunes o que
havia acontecido. Ele disparou: "Você é ingênua ou burra?". A
moça narrou sua história de terror à Polícia Civil do Paraná —
um dos oito depoimentos estarrecedores sobre a repugnante
máquina de execuções instalada na UTI do Hospital Evangélico aos
quais VEJA teve acesso. Um conjunto também ainda inédito de 21
prontuários é contundente quanto ao modus operandi da doutora
Virgínia: todos os pacientes cujos casos estão sendo
investigados receberam um mesmo coquetel de medicamentos, a que
a polícia se refere como "kit morte".
O Ministério Público já denunciou a médica e mais sete
subordinados dela por sete mortes. Mas a investigação ganhou
novo e assombroso vulto: na última sexta-feira, foram
identificados outros 317 pacientes da UTI que perderam a vida no
mesmo dia em que receberam o kit morte, entre 2006 e 2013,
segundo VEJA apurou. O bando, que responde por formação de
quadrilha e homicídio, é acusado de eliminar sistematicamente
doentes com menos chances de melhora e assim abrir espaço para
pacientes que exigiam tratamentos caros ou cuja estada não seria
prolongada — em outras palavras, mais lucrativos. A divulgação,
no fim de fevereiro, do macabro esquema comandado por Virgínia
para "desentulhar a UTI" — palavras suas, registradas em
gravações telefônicas — revelou uma presunção de poder, uma
frieza e um descaso capazes de revirar até estômagos menos
sensíveis.
Os prontuários carregam nitidamente o carimbo lúgubre do kit
morte usado para "girar leitos" (outra expressão de Virgínia) no
Hospital Evangélico. A maior parte dos pacientes recebeu doses
de quatro medicamentos — para se ter uma ideia, apenas um deles,
administrado de uma vez só e nas quantidades relatadas, seria
capaz de levar à morte. Em seguida, de acordo com todos os
depoimentos, o nível de oxigênio era reduzido ao mínimo,
eliminando as chances de sobrevivência (veja o quadro na pág.
82). Na maioria dos prontuários, a queda na oxigenação não
aparece, o que indica uma manipulação dessa
informação. "Mas as testemunhas não deixam dúvida sobre a
diminuição do oxigênio. Em alguns prontuários, ela ficou
gravada, como uma confissão de assassinato", diz a promotora
Fernanda Nagl Garcez, à frente das investigações. Em meio à
papelada médica, a história de um homem de 29 anos, ferido a
bala, escancara a premeditação. No 12° dia de UTI, Virgínia
registrou em seu prontuário, às 12h30 do dia 24 de setembro de
2009: "Evolução de óbito esperado". Às 13h35, num exercício de
prestidigitação seu comparsa Claudinei digitou o horário do
óbito: 14h55. O paciente viria mesmo a morrer nessa precisa hora
— apenas nove minutos depois de receber o famigerado kit morte.
Os depoimentos pintam um quadro detalhado da rotina de horrores
praticada no hospital. Uma linha invisível repartia os leitos da
UTI: de um lado, oito deles recebiam os pacientes com mais
chance de sobrevivência; do outro, seis alojavam aqueles com
probabilidades menores. Esse era conhecido como o "cantinho da
morte", onde Virgínia e seus asseclas mais atuavam. Mesmo quem
não fazia parte do esquema sabia do que ocorria na UTI,
sobretudo no lado dos condenados. Uma enfermeira relata que foi
encarregada de enviar à UTI geral três pacientes que haviam sido
internados na unidade coronariana um mês antes. A moça procurou
então o médico Edison Anselmo (outro acusado) para informar que
pelo menos um deles iria necessitar de novos exames. "Edison
respondeu: "Você realmente acha que este paciente estará vivo
para realizar os exames?"", contou a enfermeira à polícia,
enfatizando: "Ele faleceu no dia seguinte, e os outros morreram
dois ou três dias depois". Além de levar às últimas
consequências o afã de desocupar vagas para acomodar novos
pacientes, Virgínia constantemente prescrevia procedimentos
invasivos desnecessários e até contraindicados, sempre com o
propósito de "render mais dinheiro" para o hospital, segundo a
polícia.
A médica Virgínia. 56 anos, é descrita como pessoa violenta,
prepotente e insensível. Às vezes, relatam as testemunhas,
assistia aos pacientes agonizando pela falta de ar sem esboçar
reação. Com frequência, submetia os subordinados a humilhações e
agressões, inclusive físicas, como puxar cabelo e até arremessar
sapatos (o que certa ocasião lhe custou uma suspensão). "Muitas
vezes escutei a doutora dizer: Aqui não existe Deus; quem decide
quem vive e quem morre sou eu", reforça uma testemunha ouvida
por VEJA. Em uma das muitas amostras de absoluta insensibilidade
da Doutora Morte, ela apelidou os dois dias na semana em que
reunia os parentes dos doentes na capela do hospital, para
informar sobre seu estado de saúde, de "dia do cai-cai" porque
alguns desmaiavam ao ouvir as notícias.
Virgínia e os demais acusados chegaram a ser presos, mas agora
aguardam em liberdade a Justiça decidir se serão levados ao
banco dos réus. O advogado da médica, Elias Mattar Assad, faz
ironia contra as acusações: "Vamos discutir ética médica num
processo criminal? Eles provaram que alguém morreu, mas não há
um elemento que mostre que a morte foi causada por ação humana".
Assad, por sinal, tem seus honorários pagos pelo deputado
federal André Zacharow, que comandou o Hospital Evangélico por
mais de vinte anos e é velho amigo de Virgínia. Ao contrário do
que o advogado apregoa, as evidências de ação humana são
abundantes nos documentos já examinados. Agora, uma junta de
especialistas das secretarias municipal e estadual e do
Ministério da Saúde vai analisar, caso a caso, as 317 mortes
sobre as quais os prontuários lançam suspeitas — um roteiro
tenebroso sobre como a Doutora Morte, fria e calculadamente,
"desentulhou" a UTI que comandava. Se confirmar que nesse
material se repete o tétrico ritual de execuções, Virgínia,
formada para salvar vidas, pode se tomar uma das maiores
homicidas que o Brasil já conheceu.
Com reportagem de Natalia Cuminale.