20/02/2005 - 09h03
Médicos revelam que eutanásia é prática habitual em UTIs do país
CLÁUDIA COLLUCCI
FABIANE LEITE
da Folha de S.Paulo
ANTÔNIO GOIS
da Folha de S.Paulo, no Rio
Apesar de ilegal, a eutanásia --apressar, sem dor ou sofrimento,
a morte de um doente incurável-- é ato freqüente e, muitas
vezes, pouco discutido nas UTIs de hospitais brasileiros.
Dezesseis médicos ouvidos pela Folha confirmam que hoje o
procedimento é comum e vêem a eutanásia como abreviação do
sofrimento do doente e da sua família.
Entre eles, há quem admita razões mais práticas, como a
necessidade de vaga na UTI para alguém com chances de
sobrevivência, ou a pressão, na medicina privada, para diminuir
custos.
Há nove anos, quando a "boa morte" foi proposta por meio de
projeto de lei no Senado, houve debate, e médicos relataram com
destaque o dia em que aliviaram o sofrimento de pacientes.
A proposta caducou, mas ainda discute-se o assunto por meio do
projeto de reforma de Código Penal, que se arrasta na Câmara.
Nos conselhos regionais de medicina, a tendência é de aceitação
da eutanásia, exceto em casos esparsos de desentendimentos entre
familiares sobre a hora de cessar os tratamentos.
"Vamos deixá-lo descansar". É assim que o médico avisa a família
e dá início ao fim do sofrimento, diz o infectologista Caio
Rosenthal, um dos conhecidos defensores da eutanásia quando não
há mais recursos de tratamento.
Médicos e especialistas em bioética defendem, na verdade, um
tipo específico de eutanásia, a ortotanásia, que seria o ato de
retirar equipamentos ou medicações que servem para prolongar a
vida de um doente terminal. Ao retirar esses suportes de vida,
mantendo apenas a analgesia e tranqüilizantes, espera-se que a
natureza se encarregue da morte.
Difere, portanto, da chamada eutanásia ativa, em que há ação
direcionada para matar, como a administração de um veneno, como
em "Mar Adentro", do espanhol Alejandro Amenábar, concorrente ao
Oscar de filme estrangeiro e que estreou neste fim de semana em
São Paulo.
Para o patologista Marcos de Almeida, é hipocrisia negar que a
eutanásia seja praticada em UTIs brasileiras, onde é
freqüentemente utilizado um coquetel de sedativos batizado de
M1. "É feito de monte. O doente está em fase terminal, não se
beneficia mais com a analgesia, o médico vai e aumenta a dose de
sedação. Isso tem um efeito tóxico e vai levar o paciente à
morte."
Ainda segundo Almeida, professor de bioética da Unifesp
(Universidade Federal de São Paulo), a palavra eutanásia ficou
estigmatizada, e as pessoas têm medo de usá-la. Ele acha
necessário que uma legislação estabeleça critérios e condutas
éticas para uma morte sem sofrimento. "A morte é um preço que
merece ser pago para o alívio da dor", afirma.
Sem dúvida
Um médico intensivista de São Paulo que não quis se identificar
relata que teve de tomar a decisão sobre a eutanásia durante um
plantão, sozinho.
"Tínhamos um jovem de 18 anos baleado que precisava de terapia
intensiva. A UTI estava lotada e havia um doente terminal
mantido vivo graças a suporte tecnológico. Não tive dúvida." Ele
diminuiu o nível do aparelho que fazia o paciente respirar de
forma artificial. A pessoa morreu algumas horas depois.
O médico intensivista José Maria Orlando, presidente da
Associação de Medicina Intensiva Brasileira, porém, nega que a
eutanásia seja freqüente nas UTIs.
De acordo com Orlando, hoje, com a tecnologia dos aparelhos de
suporte de vida, como o respirador artificial, fica praticamente
indefinido o tempo pelo qual é possível manter tecnicamente vivo
um doente em estado terminal.
Em razão da eutanásia ser considerada crime, ele diz que os
médicos ficam reticentes entre deixar que pacientes sobrevivam
nessa condição ou retirá-los dela para que morram brevemente. "O
médico se vê sob a espada da Justiça."
No Estado de São Paulo, uma lei sancionada pelo então governador
Mário Covas estabelece o direito de um doente terminal recusar o
prolongamento de sua agonia e optar pelo local da morte. Covas,
que morreu com câncer na bexiga, beneficiou-se dessa lei.
Segundo Marco Segre, professor de ética da Faculdade de Medicina
da USP, a tendência é de aceitação da eutanásia em situações de
doenças incuráveis. "A tendência é de não manter a vida a todo
custo. Mas não podemos ir contra a lei", afirma Segre.
Na opinião do padre Leo Pessini, especialista em bioética, a
tecnologia existente nas UTIs transforma os pacientes terminais
em "cadáveres vivos". Pessini foi durante 12 anos capelão do HC
de São Paulo. Atendeu a centenas de pacientes terminais que
diziam preferir uma morte digna.
Prolongar artificialmente a vida também tem um custo alto para o
sistema público, carente de vagas na UTI. Orlando diz que há
pelo menos um paciente terminal em cada uma das 1.440 UTIs do
país.