REVISTA
VEJA - Edição 26/Set/04
Entrevista:
Jerome
Groopman
O remédio
da esperança
O
médico americano diz que pacientes de
doenças graves devem acreditar na mais
remota chance de cura, se houver uma
Anna Paula Buchalla
Divulgação
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"A
esperança não cura, mas pode dar ânimo ao
paciente para que ele continue a lutar pela sua
melhora. Ela inspira coragem para superar o
medo"
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Há
trinta anos o médico americano Jerome Groopman trata de pacientes
vítimas de câncer. Ao acompanhar de perto a angústia dos
doentes e de seus familiares, Groopman tirou uma lição: mesmo
nas situações mais graves, é preciso manter a esperança.
A convicção do médico não tem nada de esotérico. Ao contrário,
baseia-se também em pesquisas que mostram como acreditar na cura,
mesmo quando as chances são ínfimas, pode ser de grande valia
num tratamento. Groopman, de 52 anos, acaba de ter lançado no
Brasil seu terceiro livro, A Anatomia da Esperança (Editora
Objetiva, 270 páginas), em que defende seu ponto de vista por
meio de relatos de casos. Professor da Faculdade de Medicina da
Universidade Harvard, chefe de medicina experimental do Beth
Israel Deaconess Medical Center, em Boston, e colaborador da
revista The New Yorker, ele é autor de outros dois livros: The
Measure of Our Days (A Medida de Nossos Dias) e Second Opinions
(Segundas Opiniões), que inspiraram um seriado de televisão.
Groopman deu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja
– A esperança é capaz de salvar a vida de um paciente?
Groopman
– A esperança não cura, mas pode dar ânimo ao paciente para
que ele continue a lutar pela sua melhora. Ela inspira coragem
para superar o medo durante um processo difícil de tratamento. Há
dados que mostram que os pacientes esperançosos recuperam mais
rapidamente a saúde e têm uma taxa de sobrevida maior. Ela também
tem a função de colocá-lo como árbitro final de seu destino.
É da esperança que ele tira a energia para continuar tentando,
mesmo quando sabe que são poucas as possibilidades de sobrevivência.
Veja
– Essa não é uma forma de pensamento positivo?
Groopman – Não. É importante deixar claro que esperança não
tem nada a ver com otimismo. A
esperança é um sentimento mais complexo e muito mais profundo.
O otimista acha que tudo vai dar certo, que tudo vai acabar bem.
Mas sabemos que na vida não é assim. Nem sempre as coisas
terminam como gostaríamos, por mais duro que seja aceitar isso.
Aliás, tudo pode dar muito errado. Nutrir
esperança é reconhecer, sempre baseado na realidade dos fatos,
que, apesar de todas as dificuldades, é possível encontrar um
caminho.
Veja
– Isso é algo que um cético pode ter?
Groopman – Um cético pode ter esperança. Ele dirá,
provavelmente, que não acredita que um tratamento possa dar
resultado só porque ele é mais ou menos esperançoso. O papel do
bom médico nesse caso é dizer que, de fato, ele está certo. Não
se pode alimentar alguém com promessas, mas com dados objetivos
que atestem que existe uma chance e que ela é real. O cético
pode ver claramente todas as possibilidades de um tratamento não
dar certo. Mas é dever do médico convencê-lo de que existem
também oportunidades de sucesso. E isso é o que chamo de esperança.
Mas, infelizmente, nem sempre um paciente se convence. Há três décadas,
a psiquiatra suíço-americana Elisabeth Kübler-Ross investigou
os sentimentos de pacientes que recebem a notícia de que têm uma
doença grave. Primeiro,
vem a negação. Depois, a raiva e a negociação (como uma
promessa religiosa, por exemplo). Em seguida, a depressão e, por
fim, a aceitação. Na minha experiência, nem sempre é assim. Às
vezes, a negação persiste até o fim. Em outras, a raiva é
irremovível.
Veja
– O efeito placebo, quando um paciente melhora apenas com um remédio
inócuo, é uma prova do poder da esperança no tratamento de uma
doença?
Groopman
– O placebo é provavelmente a melhor prova biológica que temos
até agora do poder da esperança. Há experiências
impressionantes com pílulas de farinha em pacientes com a doença
de Parkinson. Os pacientes que acreditavam estar tomando um remédio
de verdade tiveram um grande aumento na produção de substâncias
químicas cerebrais benéficas, como a dopamina, e uma melhora de
suas funções musculares. Mas há uma diferença crucial entre
esperança e placebo. O placebo, com o passar do tempo, tende a
ter seu efeito reduzido. Já a esperança pode sempre ser
recarregada.
Veja
– Quando vale a pena insistir num tratamento, contrariando o que
mostram a experiência e as estatísticas da doença?
Groopman – Não se pode desprezar uma chance, por menor que
seja. Vale a pena tentar sempre, porque seu paciente pode estar
naquele grupo dos poucos que se beneficiam de um determinado
tratamento. Impossível saber antes. Em outras palavras, se para
2% ou 3% o tratamento funciona em casos ditos como perdidos, seu
paciente pode ser um deles, por que não? Gosto
de citar o exemplo de George Griffin, um patologista da
Universidade Harvard que foi vítima de um grave câncer de estômago.
A ironia é que o câncer de estômago tinha sido o objeto de
estudo de toda a sua vida. Ele fez questão de receber um
tratamento agressivo, com altas doses de quimioterapia, algo que
eu jamais tentaria em um paciente com prognóstico como o dele.
Treze anos depois de ter se submetido a essa terapia de choque,
Griffin continua vivo.
Pode-se dizer que superou a doença, algo inimaginável para
muitos. A maioria dos tumores de um mesmo tipo se comporta
basicamente do mesmo modo. Mas sempre haverá um George Griffin
que consegue escapar. No século XIX, Oliver Wendell Holmes, ensaísta
e médico americano, professor de anatomia e fisiologia da
Universidade Harvard, escreveu: "Cuidado para não retirar a
esperança de outro ser humano". Um
médico jamais deve se colocar na posição de juiz, dando ao
paciente uma sentença de dias, semanas ou meses de vida.
Não se pode considerar uma pessoa perdida a priori. A
onisciência a respeito da vida e da morte não faz parte do domínio
do médico.
Veja
– Mas alguns médicos ainda se comportam dessa forma, como se
tivessem controle sobre tudo.
Groopman
– É verdade. Há uma boa piada que dá conta dessa pretensão.
Vários santos esperavam pacientemente para entrar no céu, quando
alguém de jaleco e estetoscópio fura a fila. Um dos santos se
aproxima de São Pedro cobrando uma explicação e ouve a
resposta: "Ora, aquele é Deus. Ele acha que é médico".
Veja
– Os médicos hoje tendem a ouvir mais seus pacientes antes de
tratá-los?
Groopman – Até a década de 80, era comum que os médicos
decretassem logo de cara quanto tempo de vida tinha uma pessoa que
sofria de uma doença grave. E ponto final. Isso não era bom,
evidentemente, inclusive porque minava a esperança do paciente.
Nessa mesma época, como conseqüência da frieza e da falta de
comunicação com o médico, os pacientes
e seus familiares começaram a deixar claro que queriam ser
tratados com honestidade, e não com rudeza.
Isso incluía serem informados em detalhes sobre a doença e as
chances de o tratamento dar certo – o que antes era informação
privativa dos médicos. Foi também nesse período que os médicos
passaram a enfrentar a concorrência das terapias alternativas,
que tendem a prover os pacientes de uma longa e detalhada conversa
sobre seu estado emocional. Agora, graças à confluência desses
fatores, estamos começando a viver uma fase mais equilibrada, em
que o paciente é encorajado a lutar juntamente com o médico.
Como numa parceria.
Veja
– Na hipótese mais provável de um paciente grave não ter a
sorte de estar no pequeno grupo que se beneficia do tratamento,
insistir até o fim não é apenas uma forma de prolongar o seu
sofrimento?
Groopman
– Depende do caso. Em algumas situações, em que o tratamento
é doloroso e fica muito claro que a doença não está
respondendo ao tratamento – ou porque a terapia falhou ou porque
é muito tóxica –, o melhor é recuar. Do contrário, pode-se
estar tirando dias, semanas ou até mesmo meses em que esse
paciente poderia estar em casa, ao lado dos amigos e da família.
Veja
– Como médico, o que o senhor faz quando constata que um
paciente não tem a menor chance de sobreviver?
Groopman – Passou pelas minhas mãos uma mulher maravilhosa,
lutadora, mas com um câncer em fase terminal. Eu
não tinha nada a oferecer e, ainda assim, ela me disse que eu
estava errado. Que eu tinha a oferecer o remédio da amizade. O
que ela queria dizer é que, naquele momento, eu deveria ajudá-la
a cuidar de seu espírito, já que o corpo não respondia mais.
Veja
– Então nunca se deve dizer a um paciente que seu caso não tem
mais esperança, mesmo que ele esteja em estado terminal?
Groopman
– Em geral, há muita gente envolvida num caso terminal: outros
médicos, a família, amigos, além do principal interessado, o
doente. Eu diria que, se o paciente quiser saber qual o seu real
estado, o médico deve ser honesto com ele e fornecer todas as
informações clínicas. Por mais estranho que possa parecer, essa
é uma forma de dar esperança ao paciente. Afinal, ele é quem
sabe melhor o que quer fazer com o tempo que lhe resta.
Veja
– Com o advento da internet e o aumento das notícias sobre saúde
em jornais, revistas e televisão, as pessoas têm mais informações
sobre doenças. Isso é bom ou ruim para cultivar a esperança?
Groopman – Acredito que o paciente tem amplo direito de saber
tudo sobre a sua doença, mas pode ser muito difícil para ele
interpretar números e estatísticas dos noticiários e entender
seu caso individualmente. Há ainda uma quantidade enorme de
informações na internet que não são tão acuradas. É papel do
médico ajudar o paciente a encontrar esperança onde ela de fato
exista. Mas mesmo o profissional mais cuidadoso pode errar. Certa
vez, despejei sobre uma paciente uma série de estatísticas de
sobrevivência relativas a sua doença. O resultado foi que,
diante dos números apresentados, ela não conseguia deixar de
pensar que iria morrer a qualquer momento. As situações mais
rotineiras eram enegrecidas pelo espectro da morte. Eu me culpei
muito por isso e cheguei à conclusão de que é necessário um
equilíbrio. Em
resumo, não é preciso arrasar uma pessoa com a frieza das estatísticas,
nem pecar por omissão.
Veja
– O medo seria o principal inimigo da esperança?
Groopman – Eu já estive na posição de paciente e sei que, quando
se está com medo, é muito difícil ver as coisas com clareza.
Acho que cada paciente deveria ter a seu lado familiares ou amigos
que ouvissem cuidadosamente o que diz o médico e o ajudassem a
tomar decisões. Isso porque muitos doentes ficam clinicamente
deprimidos e acabam desistindo de um tratamento, por mais
promissor que ele seja. Cito no meu livro o caso de um
ex-combatente de guerra que teve um linfoma. Por ter visto um
colega morrer do mesmo mal, e por tê-lo acompanhado em seu
sofrimento, ele a certa altura desistiu de lutar. Sem falsas
esperanças, mas com o que podia prometer a ele, eu o convenci a
se tratar. E ele está vivo até hoje.
Veja
– O senhor acredita que a fé religiosa possa ter influência em
alguns processos de cura?
Groopman
– Acho que rezar e acreditar em algo é imprescindível na
medida em que leva uma pessoa a focar a sua mente. Já está
provado que aquietar a mente traz benefícios diretos ao
organismo, como a redução da pressão arterial e dos batimentos
cardíacos. Posso assegurar, no entanto, que procurei
incessantemente um dado científico que mostrasse que um paciente
com câncer que reze se sai melhor do que um que não reze. E não
encontrei nenhuma evidência disso. Mas, é claro, a oração e a
fé são uma forma de ajuda, uma excelente ferramenta para que o
doente se sinta esperançoso. Há uma frase ótima na tradição
judaica: "Reze por um milagre, mas não espere por um".
Veja
– O senhor foi vítima de uma grave lesão num disco lombar e,
de repente, se viu na condição de paciente. De que forma essa
experiência mudou sua visão da prática médica?
Groopman – Uma vez escrevi que aprendi mais nos poucos meses em
que fui paciente do que em todos os anos que passei na faculdade
de medicina. A experiência me ensinou muitas coisas. A primeira
delas é que, quando se é paciente, se fica extremamente vulnerável.
Ouvi de um médico que eu ficaria bom e preferi acreditar nele,
obviamente. O problema é que ele não estava sendo honesto
comigo, porque não tinha a solução para a minha dor. Aprendi
que é preciso questionar e ter uma segunda opinião. Sempre. Eu não
sou perfeito, cometo erros. Posso errar em meus julgamentos e
incentivo meus pacientes a procurar outro especialista em casos
graves. Talvez
outro médico tenha uma visão diferente e melhor do mesmo caso.
Veja
– Quem tem esperança vive melhor?
Groopman – Essa é a conclusão. Um paciente esperançoso e
confiante pode viver mais ou não. Mas
pelo menos vive melhor consigo próprio. E essa é uma ótima razão
para ter esperança.
Nossa
opinião: Editorial
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